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O passeio da tristeza

por seila, em 05.11.14

                                                            (Foto de Bernardo Gomes)

 

Era um dia de Fevereiro, de um Inverno que tendia a ser rigoroso.

Na família já há longo tempo empobrecida, entrava agora gente nova. Passeava junto ao rio que seguia o seu curso parecendo indiferente ao lado da pitoresca vila, Alcochete que graciosamente conservava e conjugava muito do antigo da sua traça e da sua vivência com o avanço dos tempos modernos.

Talvez afinal o rio não se sentisse tão indiferente. Talvez caminhasse mirando e admirando a margem tão povoada de história.

Mas alguém se sentia triste. Ele.

Dei comigo a pensar quantas pessoas no mundo estariam naquele preciso momento com a mesma ansiedade, com a mesma e terrível angústia.

E todos da família, já em algum dia se haviam sentido assim.

Permanecera alheado, ausente, distante dos outros e as poucas palavras que dissera, foram de circunstância, ou contidas com algum vestígio de raiva ou mágoa sincera.

A família caminhava agora no pontão que entrava rio dentro.

Havia silêncios entre cortados por pequenas conversas dispersas.

No meio, ele continuava sozinho tão profundamente acompanhado da sua dor.

O pontão terminara. Havia uns bancos de pedra. Sentou-se sombrio como que cansado, olhando a distância. Os cigarros ardiam-lhe nas mãos magras. Pegou no telemóvel e focou a vida que via. Talvez como quem queira aprisionar na lente a ilusão perdida.

O céu pintara-se de azul com manchas brancas acinzentadas e na sua benevolência deixou que tímidos raios de sol curiosos espreitassem.

A tarde avançava. O ar arrefecia.

Fez-se a família ao regresso do caminho.

Ele seguia inquieto, desajustado.

E eu seguia-o de perto talvez com esperança de saber ajudar e junto do desespero, rezava, pedindo ao pai que lhe arrancasse do peito aquela dor, mas lhe deixasse inteiro o coração.

Não fora para ser infeliz que o fizera. Nem a ele, nem a nenhum outro.

 

 

 

Seilá, 5 de Fevereiro de 2014

 

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publicado às 12:07

Solidão e solidariedade

por seila, em 31.10.14

 

Foto de LUÍS VIEIRA

 

O homem andava junto ao mar.

Estava triste.

Vento e chuva.

 

Era um dia de Inverno sombrio. Ameaçava de se tornar tempestuoso. De mostrar a força e fúria assombrosa que a natureza, também ela, pode conter.

Poucas pessoas se atreveriam a um passeio sugestivo de prazer, do prazer que se procura em outros dias mais abençoados de outras estações do ano.

E no entanto, havia um homem que caminhava naquele pontão à beira mar.

Que idade teria? Talvez quarenta e cinco, quarenta e seis…

Caminhava de um lado para o outro num vai e vem de passo apressado. Tinha o semblante triste e toda a postura do seu corpo deixava transparecer um estado de alma carregada, quem sabe de que amargura.

Os ombros curvavam-se para a frente, os braços pendiam ao longo do tronco e nem se quer as mãos procuravam abrigar-se na protecção dos bolsos. Os pés pareciam atropelar-se a cada passo, não sei se pelo peso do mundo que em si parecia carregar, se pelo vento arrogante que em silvos estridentes assobiava, lhe enrolava a roupa e emaranhava os cabelos.

Quando de mim se aproximava conseguia perceber-lhe o rosto humedecido pelo olhar alagado.

Seria que chorava?

Talvez fossem apenas salpicos de outra água salgada, daquela água salgada que das ondas se desprendiam quando estrondosamente se atiravam de encontro às rochas em altas cortinas brancas e frias.

E todo o espaço cheirava a mar. Lembro-me de ter pensado como me era agradável aquele sentir.

E logo de seguida pensei como era egoísta aquela minha sensação. No abrigo do acento do meu carro podia alhear-me do que observava e usufruir apenas do que de belo ali encontrava. É bem verdade que mesmo uma tempestade tem a sua beleza própria. Única e devastadora, mesmo assim, arrebatadora.

Afinal o que me levara ali? Apenas a procura de contemplar um belo espectáculo.

O céu era agora mais escuro. A chuva começou a cair um pouco tímida ou talvez amedrontada pelo vento que a desafiava.

E no ar outro cheiro. O cheiro a terra molhada.

Fascinada, eu estava, mas percebi de repente que a minha fascinação se concentrava naquela figura humana perseguida pelo seu destino.

A chuva aumentara de tom. Podia agora ouvir o seu respingar no chão.

Seria previsível que aquele homem se recolhesse. Caminhar no pontão sob as agressões do mau tempo tendo o mar bravio e o céu ameaçador como cenário de fundo é uma coisa. Outra é sujeitar-se a ficar debaixo de chuva, recebê-la no corpo desprotegido e nem sequer se dar conta. Na verdade, continuava o seu difícil passeio completamente alheio ao exterior de si próprio.

Engrossava mais a chuva desabando agora num ruído cavernoso, batia no tejadilho do carro fazendo-me encolher enquanto rios de água deslizavam no para brisas.

E aquele homem continuava, continuava e continuava…

A sua silhueta desenhava-se por entre a grade estreita de água. Tornara-se uma figura grotesca que me obcecava e de quem não conseguia desviar o olhar, como se esperasse que a qualquer momento se esvaísse no ar num paço de magia.

Algo de muito terrível devia atormentar aquela alma envolta naquele corpo solitário, abandonado, devastado.

E quanto mais o observava, tanto mais aguçava a minha compaixão.

Quanto mais… tanto mais…

A expressão entranhou-se em mim como o pêndulo de um relógio marcando o tempo sem parar.

Abri a porta e saí. Uns cem mil milhares de gotas de chuva me cercaram. Aproximei-me dele – o senhor está bem, precisa de ajuda? – Ouvi-me perguntar.

Nem dera pela minha chegada, e eu senti-me a pessoa mais estúpida do mundo. Que espécie de atracção me levara ali e que pergunta mais absurda. Não era óbvio que aquele homem não estava bem?

Ele continuou, deu dois ou três passos ignorando a minha presença e de repente estancou. Lentamente, muito devagarinho, voltou-se e olhou-me. No olhar esbugalhado quase louco, vislumbrei-lhe um resquício de surpresa mas apenas disse, em voz baixa repleta de tristeza, como se há longas horas falássemos.

- Este dia nunca podia ter acontecido… nunca…

Depois, pela primeira vez vi o seu corpo endireitar-se, o rosto ergueu-se aos céus, acompanharam-no os braços, as mãos crispadas.

- Nunca… Nunca… Nunca…

Disse-o gritando, em gritos de dor, de desespero, de fúria, de raiva.

E de novo seu corpo definhou estremecendo de choro.

Aproximei-me um pouco mais e pousei-lhe a mão no braço.    

- Posso dar-lhe um abraço – perguntou. E sem esperar a resposta, abraçou-me como se abraça uma dádiva e apertou-me como se quisesse aprisionar o dom da vida.

De novo a sua voz soou baixa embargada pelo choro, entrecortada de soluços.

- A minha menina só tem seis meses de vida… é uma criança ainda, dezasseis anos… porquê, ela e não eu… porquê…

E soluçava com a tortura de não ter resposta, a dor de não ter solução.

Salpicos das ondas, pingos de chuva, gotas de lágrimas fundiam-se, eram agora uma água só.

Não sei quanto tempo durou este drama porque o tempo parou. Quando voltou, o abraço abrandava e por fim desfez-se o laço.

Segurando-me as mãos voltou a falar.

- Obrigado.

E sem me dar oportunidade de proferir palavra, continuou.

- E não me diga que não fez nada! Deu-me a oportunidade de ser fraco, de questionar o universo, de não ter que fingir coragem, de ser amparado e não ter que amparar. Acredite, nos meus piores momentos, quando precisar de comprar coragem vou sempre lembrá-la.

Agora vá. Está encharcada, vai fazer-lhe mal. Eu também devo ir, tenho todos à minha espera.

Colocou as minhas mãos uma em cima da outra abandonando-as e num gesto de cabeça, incitou-me a partir.

Não conseguia distinguir o que eram as minhas roupas ou o que era água, logo eu que detesto apanhar chuva. Também não lembro de ter feito o caminho até casa.

Recebi uma pequena herança deste episódio. Uma gripe fortíssima levou-me à cama. É de lá que escrevo esta história.

Muito pouco sei sobre aquele homem, nem o seu nome conheço e no entanto sei tudo o que preciso saber para não o esquecer. É muito provável que não volte a vê-lo. Talvez eu volte a procurar o mar naquele pontão da Costa da Caparica na secreta esperança de o encontrar, ou talvez não. Talvez eu saiba onde ele estará sempre. Junto da sua doce menina.

E enquanto relembro penso quanto é enorme o peso da solidão e como é ínfima a solidariedade.

 

Seilá, 18/11/2013

 

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publicado às 18:53


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