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Solidão e solidariedade

por seila, em 31.10.14

 

Foto de LUÍS VIEIRA

 

O homem andava junto ao mar.

Estava triste.

Vento e chuva.

 

Era um dia de Inverno sombrio. Ameaçava de se tornar tempestuoso. De mostrar a força e fúria assombrosa que a natureza, também ela, pode conter.

Poucas pessoas se atreveriam a um passeio sugestivo de prazer, do prazer que se procura em outros dias mais abençoados de outras estações do ano.

E no entanto, havia um homem que caminhava naquele pontão à beira mar.

Que idade teria? Talvez quarenta e cinco, quarenta e seis…

Caminhava de um lado para o outro num vai e vem de passo apressado. Tinha o semblante triste e toda a postura do seu corpo deixava transparecer um estado de alma carregada, quem sabe de que amargura.

Os ombros curvavam-se para a frente, os braços pendiam ao longo do tronco e nem se quer as mãos procuravam abrigar-se na protecção dos bolsos. Os pés pareciam atropelar-se a cada passo, não sei se pelo peso do mundo que em si parecia carregar, se pelo vento arrogante que em silvos estridentes assobiava, lhe enrolava a roupa e emaranhava os cabelos.

Quando de mim se aproximava conseguia perceber-lhe o rosto humedecido pelo olhar alagado.

Seria que chorava?

Talvez fossem apenas salpicos de outra água salgada, daquela água salgada que das ondas se desprendiam quando estrondosamente se atiravam de encontro às rochas em altas cortinas brancas e frias.

E todo o espaço cheirava a mar. Lembro-me de ter pensado como me era agradável aquele sentir.

E logo de seguida pensei como era egoísta aquela minha sensação. No abrigo do acento do meu carro podia alhear-me do que observava e usufruir apenas do que de belo ali encontrava. É bem verdade que mesmo uma tempestade tem a sua beleza própria. Única e devastadora, mesmo assim, arrebatadora.

Afinal o que me levara ali? Apenas a procura de contemplar um belo espectáculo.

O céu era agora mais escuro. A chuva começou a cair um pouco tímida ou talvez amedrontada pelo vento que a desafiava.

E no ar outro cheiro. O cheiro a terra molhada.

Fascinada, eu estava, mas percebi de repente que a minha fascinação se concentrava naquela figura humana perseguida pelo seu destino.

A chuva aumentara de tom. Podia agora ouvir o seu respingar no chão.

Seria previsível que aquele homem se recolhesse. Caminhar no pontão sob as agressões do mau tempo tendo o mar bravio e o céu ameaçador como cenário de fundo é uma coisa. Outra é sujeitar-se a ficar debaixo de chuva, recebê-la no corpo desprotegido e nem sequer se dar conta. Na verdade, continuava o seu difícil passeio completamente alheio ao exterior de si próprio.

Engrossava mais a chuva desabando agora num ruído cavernoso, batia no tejadilho do carro fazendo-me encolher enquanto rios de água deslizavam no para brisas.

E aquele homem continuava, continuava e continuava…

A sua silhueta desenhava-se por entre a grade estreita de água. Tornara-se uma figura grotesca que me obcecava e de quem não conseguia desviar o olhar, como se esperasse que a qualquer momento se esvaísse no ar num paço de magia.

Algo de muito terrível devia atormentar aquela alma envolta naquele corpo solitário, abandonado, devastado.

E quanto mais o observava, tanto mais aguçava a minha compaixão.

Quanto mais… tanto mais…

A expressão entranhou-se em mim como o pêndulo de um relógio marcando o tempo sem parar.

Abri a porta e saí. Uns cem mil milhares de gotas de chuva me cercaram. Aproximei-me dele – o senhor está bem, precisa de ajuda? – Ouvi-me perguntar.

Nem dera pela minha chegada, e eu senti-me a pessoa mais estúpida do mundo. Que espécie de atracção me levara ali e que pergunta mais absurda. Não era óbvio que aquele homem não estava bem?

Ele continuou, deu dois ou três passos ignorando a minha presença e de repente estancou. Lentamente, muito devagarinho, voltou-se e olhou-me. No olhar esbugalhado quase louco, vislumbrei-lhe um resquício de surpresa mas apenas disse, em voz baixa repleta de tristeza, como se há longas horas falássemos.

- Este dia nunca podia ter acontecido… nunca…

Depois, pela primeira vez vi o seu corpo endireitar-se, o rosto ergueu-se aos céus, acompanharam-no os braços, as mãos crispadas.

- Nunca… Nunca… Nunca…

Disse-o gritando, em gritos de dor, de desespero, de fúria, de raiva.

E de novo seu corpo definhou estremecendo de choro.

Aproximei-me um pouco mais e pousei-lhe a mão no braço.    

- Posso dar-lhe um abraço – perguntou. E sem esperar a resposta, abraçou-me como se abraça uma dádiva e apertou-me como se quisesse aprisionar o dom da vida.

De novo a sua voz soou baixa embargada pelo choro, entrecortada de soluços.

- A minha menina só tem seis meses de vida… é uma criança ainda, dezasseis anos… porquê, ela e não eu… porquê…

E soluçava com a tortura de não ter resposta, a dor de não ter solução.

Salpicos das ondas, pingos de chuva, gotas de lágrimas fundiam-se, eram agora uma água só.

Não sei quanto tempo durou este drama porque o tempo parou. Quando voltou, o abraço abrandava e por fim desfez-se o laço.

Segurando-me as mãos voltou a falar.

- Obrigado.

E sem me dar oportunidade de proferir palavra, continuou.

- E não me diga que não fez nada! Deu-me a oportunidade de ser fraco, de questionar o universo, de não ter que fingir coragem, de ser amparado e não ter que amparar. Acredite, nos meus piores momentos, quando precisar de comprar coragem vou sempre lembrá-la.

Agora vá. Está encharcada, vai fazer-lhe mal. Eu também devo ir, tenho todos à minha espera.

Colocou as minhas mãos uma em cima da outra abandonando-as e num gesto de cabeça, incitou-me a partir.

Não conseguia distinguir o que eram as minhas roupas ou o que era água, logo eu que detesto apanhar chuva. Também não lembro de ter feito o caminho até casa.

Recebi uma pequena herança deste episódio. Uma gripe fortíssima levou-me à cama. É de lá que escrevo esta história.

Muito pouco sei sobre aquele homem, nem o seu nome conheço e no entanto sei tudo o que preciso saber para não o esquecer. É muito provável que não volte a vê-lo. Talvez eu volte a procurar o mar naquele pontão da Costa da Caparica na secreta esperança de o encontrar, ou talvez não. Talvez eu saiba onde ele estará sempre. Junto da sua doce menina.

E enquanto relembro penso quanto é enorme o peso da solidão e como é ínfima a solidariedade.

 

Seilá, 18/11/2013

 

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publicado às 18:53

Manhã de Maio

por seila, em 29.10.14

                                (Foto copiada da net. Não consegui saber o autor)

 

Em movimento gracioso de ave que levanta voo, ergueu os braços palmas das mãos ligeiramente em concha, voltadas para cima. O rosto procurou os raios de luz. Fechou os olhos lentamente e nos lábios entreabertos desenhou-se-lhe um sorriso feliz.

De onde a via, pareceu-me que agradecia a graça do sol que a aquecia, a mistura dos aromas da terra que em tempo de renovação, exalavam. Avidamente os inspirava.

Eram pinceladas extensas de amarelo oiro entrelaçadas em tons de lilás suavizadas de manchas de pequenos pontos brancos. O verde não se fazia rogado e aqui e ali tufos de vermelho vibrante sobressaiam das frágeis pétalas de lindas papoilas nascidas.

Um cântico de cor emoldurado por filas de Sobreiros. Troncos descascados exibindo um castanho encarniçado dando lugar á copa de um verde seco, ondulante, sob a brisa leve que passava. Transpiravam dignidade.

E como que sendo o abrigo de um tecto, cobria todo o cenário, o azul limpo de um céu aberto e brilhante, empréstimo do sol do meio do dia.

Reinava a paz, a tranquilidade no silêncio apenas quebrado pelo cantar dos pássaros que em alegria plena saudavam o renascer da vida.

Quisera ser pintor. Gravar na tela momento de tamanho esplendor.

Falta-me a arte de o ser.

Mas aquela miragem que meus olhos viram ficou no pensamento retida, imortalizada.

Uma manhã do princípio de Maio algures pela província do Alentejo, um tempo de renovação, mistério da terra abençoado.

 

 

 

Seilá, 12 de Maio de 2013

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publicado às 22:37

Lembra-te de mim

por seila, em 27.10.14

 (Foto minha)

 

Lembra-te de mim

 

Lembra-te de mim na luz difusa das madrugadas

Lembra-te de mim nas horas longas de nostalgia

Lembra-te de mim nas palavras do poeta cantadas

Lembra-te de mim no silêncio gritado da noite fria

Lembra-te de mim no rumor buliçoso da bela cidade

Lembra-te de mim em cada canção murmurada baixinho

Lembra-te de mim nos rostos cansados vincados de saudade

Lembra-te de mim nas pedras vencidas, semeadas no caminho.

Lembra-te de mim nos dias felizes, de choros, de pranto,

                                  de sonhos, de encanto.

Lembra-te de mim porque eu vivi a não esquecer

                                 lembrar-me de ti.

 

 Seilá, 4 de Março de 2013

 

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publicado às 19:00

Conjugando o verbo ser

por seila, em 26.10.14

 (foto minha)

 

Conjugando o verbo Ser

 

Eu fui

Eu sou

O que serei?

Fui ave colorida livre, leve e solta

E em asas de sonhos voei desenvolta.

Sou leoa aguerrida nas artes da selva da vida

Deambulando nos trilhos, abrindo caminhos, destemida.

Serei…

Arco iris no horizonte lembrando suspiros antigos.

Barco em porto seguro, guardando desejos perdidos.

Rio de águas calmas, correndo, rumando ao seu destino.

Serei a voz enrouquecida entoando a victória de um hino.

E quando um cavalo alado com os meus olhos eu vir

Então deixarei de ser porque é tempo de partir.

 

Seilà, 22-01-2013

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publicado às 10:20

Un anno fa

por seila, em 25.10.14

 

   (fotos minhas)

 

Sobranceiro erguendo-se no cimo da colina na terra implantado, o castelo secular guarda a sua cidade observando-a, admirando-a, protegendo-a.

Quanta história através dos tempos encerra dentro das suas muralhas, de momentos de glória que o enchem de orgulho.

Quantas histórias, dos seus moradores, dos seus visitantes presenciou através de cada janela indiscreta dos edifícios da cidade que a eles todos vê. Tantas que lhes perde o conto. Guarda-as no silêncio das suas pedras emudecidas.

Olha e sente. Cada uma diferente da outra.

Na sua essência, todas por base o amor ou…

Não, o resto não importa! Só o amor, seja ele qual for, é valioso, digno de ser contado.

 

Há um ano o castelo observou mais uma história e tudo lhe indicou ter um bom começo, prenúncio de que poderia ser duradoura.

Prazenteiro guardou-a inscrevendo-a nas paredes a letras invisíveis, não fosse alguém descobri-la.

Eram forasteiros quem ele viu através daquela específica janela de luz difusa.

Não chegou a saber-lhe o desfecho.

 

Hoje, sob a abóboda de estrelas abraçadas pelo luar, escuta o vento que serpenteia por entre as ameias das suas muralhas assobiando baixinho. Sente a suave brisa que da noite quente e calma entra pelas suas janelas. Ambos lhe contam a mesma história.

- Tudo foi em vão - dizem-lhe - só restam as memórias para que não esteja esquecida. Acabou no âmago da indiferença.

 

E na sua beleza de monumento iluminado no sereno da noite, o castelo reflecte uma enorme nostalgia.

 

Un anno fa 

 

Seilá, 22 de Agosto de 2012

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publicado às 20:22


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